sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Recado de Zoraide

Mais uma vez, você fez isso.
Consumi horas que me são preciosas pensando no porquê de você me fazer isto. A cara debochada a cada vez que me aproximo, seu tom grosseiro quando precisa falar qualquer coisa que seja, quando precisa falar... Os gestos ríspidos e tudo tão gratuito, tão sem sentido, sabe?
Me pergunto quando conseguirei olhar de novo nos seus olhos sentindo tudo isso que me fez sentir por nada. Mas sei que o dia seguinte sempre amanhecerá um novo dia, um dia diferente dos outros dias. E, além disto, é a padaria mais próxima de casa e tem o único sonho que consigo comer no bairro. Acho até que amanhã tentarei comer o lanche de mortadela com pistache que tanto falam!
Mas  ainda não me esqueci de você, queridinho. Ainda troco meia dúzia de palavras com o gerente e te tiro esse empreguinho de caixa, seu mal educado! Ah, se tiro!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Sentença

Sem sorriso na janela nem roupas espalhadas pelo chão. O amor que por aquela porta saiu, jamais se arrependeria de pela mesma ter entrado.
A música acaba, cortinas agora se fecham e o que adormece por detrás do palco, mesmo com o choro da despedida preso entre cordas frouxas e olhos apertados, uma hora se faz pontuar no breu do esquecimento.
Levo comigo o que me trouxe de início a isto e deixo um espaço que não voltará a ser habitado. Me desculpo e, dessa vez, choro... Parece que é chegada a hora.
Cortinas fechadas, luzes apagadas e cadeiras vazias. Tudo certo.
Acabou.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ba(da)lada final


Sentada em sua poltrona preferida de assento e encosto de couro na cor caramelo ao estilo Luís XV, ela esperava Julio voltar do quarto com o casaco que havia combinado buscar na noite anterior. A velha radiola - mas impecável, como se houvesse acabado de ser desembrulhada - tocava um disco que repetia quase sem vontade: "Baby, não deixe as cartas em cima da mesa. Talvez eu volte, talvez nunca mais... Me deseje sorte." e com os pés ela acompanhava o compasso do piano choroso, enquanto suas mãos batucavam sem qualquer ritmo os braços da poltrona.
Julio chegou com o casaco, entregou-lhe e sentou-se no sofá à frente. Antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, Raquel o interrompeu pedindo que colocasse novamente a música que tocava antes e, sem esperar pela resposta que viria, foi até a radiola e o fez.
Raquel voltou à poltrona.
- Julio, eu estava pensando em uma coisa...
- Raquel, antes eu queria...
- Julio, estava pensando em relógios de corda. Você já teve um? Já viu um?
- Sim, você sabe que meu avô colecionava antiguidades e que quase tudo o que tenho aqui herdei dele.
- Mas nunca vi um relógio de corda aqui!
- Vovó tratou de vendê-los quando meu avô... Ah, você sabe.
- Mas então, você já viu um, certo? Já parou pra pensar no mecanismo deles? É genial!
- Não, nunca tinha pensado nisso... Raquel, eu queria te falar...
- Julio, presta atenção. Os relógios de corda não funcionam sem a gente. Imagine como devia ser quando só existiam os relógios de corda. Se você esquecesse de dar corda um dia que fosse, perderia o tempo, entende? Sem dar corda, o tempo para.
- Mas mesmo assim, ainda assim, temos a noção de tempo.
- Noção... Só ter noção não resolve nada, Julio. Tem que dar corda, o tempo tem que continuar passando, os ponteiros andando... sabe? Noção não basta. Tem que dar corda, Julio.
- Entendo. Raquel...
- Seu avô dava corda neles todos os dias?
- Não me lembro... Acho que sim. Mas a minha avó não tinha paciencia. Talvez por isso tenha vendido todos.
- E você, Julio? Por que você não dava corda nos relógios?
Julio não respondeu, mas o silencio criado entre os dois agora entupia seus ouvidos, transbordando pelas frestas de portas e janelas, escorrendo entre os vãos do piso. Já não queria.
Raquel levantou-se da poltrona rapidamente, e caminhando até a porta, foi se despedindo:
- Julio, muito obrigada pelo casaco. Com esse frio que tem feito, não sei como ficaria sem ele. E Julio... não deixe as cartas em cima da mesa.
Abriu ela mesma a porta, saiu e fechou.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Coração peneira


Hoje acordei querendo ter notícias suas.
No sonho chovia. Eu dentro de uma casa que desconhecia, andava de um canto para o outro da sala cercada de um vazio que há muito não sentia – nem quando acordada, vagando por trechos de textos e palavras só nossas. Como um mormaço desértico, daqueles que sufocam e não descem pela garganta de jeito nenhum, sendo assim forçada a respiração nasal, o ar que entra queimando as narinas...Era dor. Era dor e mais alguma coisa que não conseguia sintetizar, cruzando a sala vazia com o mundo se acabando em água do lado de fora.
Essa dor pairava em forma de dúvida, uma curiosidade cruel que, depois de resolvida, derrubaria num breve movimento de olhos todas as paredes de um castelo, o castelo feito por mim mas nunca meu.
Eu me perguntava com o olhar fixo nos tacos do chão da sala: quais eram os valores das coisas e pessoas pra você? Se esses valores eram também medidos por peso e que, se realmente assim fosse, como funcionaria essa balança e, em sua própria defesa, que defeito genérico você alegaria. Uma balança programada pra que nenhum item pesado atingisse pesagem suficiente pra valer coisa alguma, o mínimo que fosse. As equações e todas suas mais variadas variantes resultando invariavelmente no mesmo valor negativo. Peneira seletiva da solidão.
Nada fica do lado de dentro. Sempre seu amor e de mais ninguém.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Diamantes e lodo

Vejo essa tua felicidade intensa com duração de três ou quatro se estendendo ao máximo de cinco meses esvair-se, e de uma forma terrivelmente cruel, isso me conforta. Conforta tanto e tão que me pego agora com um sorriso cínico no canto da boca e então vem o alívio respira enche os pulmões solta lentamente como quem acaba de ser salvo de um triste acontecimento ou situação desagradável. 
Essa expressão logo é tomada por outra completamente diferente: agora com a boca fechada, dentes cerrados e vários quilos sobre os ombros já cedendo, me lembro - com certo esforço, pois não sou mais aquela, você sabe, não sou mais a mesma. Me lembro daquela noite em que você lia sentado no canto da sala em cima das almofadas jogadas, cotovelos apoiados sobre as pernas cruzadas como índio, livro em punho. Eu escolhia uma música. Nós dois estávamos tão diferentes, sequer dividíamos o mesmo mundo naquele exato momento. Pensei em colocar uma dançante, dançante e louca, ou quem sabe Don't feel sorry for me, que bem viria a calhar. Egoísmo. 
Voltei o olhar pra você e continuava do mesmo jeito, petrificados você e o livro. Talvez você nem ouvisse a música, mas eu queria saber o que viria depois, depois de uma música e outra e ainda as outras. Coloquei qualquer coisa, daquelas que não despertam interesse, nem desviam a atenção das inúmeras conversas por todos os cantos da casa. Foi quando as pessoas começaram a chegar. 
Iam entrando com suas bebidas, cigarros e suas risadas altas. Você permaneceu inerte. Inerte, só, ridiculamente chato e sóbrio - sobriedade daquelas que te fazem se sentir um lixo por tomar dois copos de cerveja e ter resmungado um tanto da vida com os amigos. 
Não conseguia parar de pensar naquela cena triste que se configurava em volta dos seus, os meus, os nossos queridos. Não era só isso, era amargo e muito mais. Esse misto de amargor, féu e lodo foi cravado por você mesmo onde qualquer um, até mesmo você, não pudesse remover ou mudar de lugar. Essa maldita estaca estava lá, acomodada confortavelmente entre caixa torácica-pulmões-coração. Fazia parte do seu corpo, fazia parte do ser, do que saía pela sua boca e também se era expelido por cada poro. 
Debaixo de você nascia um tipo curioso de musgo que ia subindo por suas pernas metamorfosicamente se transformando numa casca escura opaca fria, tomando conta de todo o corpo. 
De súbito, tive a vontade de te jogar pela janela e ficar com o seu livro. Desligaria a música e mandaria grosseiramente que todos fossem embora com suas piadas e cigarros acesos. E que não vomitassem no sofá, por favor. Que me levassem junto, por favor. Por favor. 
Vezenquando, procurava distrações andando entre os cômodos da casa. Já na cozinha, preparando uma bebida, ouvi no corredor cochichos e comentários não-sei-de-onde: "Nossa, será que brigaram?...Acho que não dura muito tempo não, hein? Pareciam se gostar tanto...". Parei. Permaneci estática. Gritei dentro da minha cabeça com toda a força e esse grito explodiu por dentro como um tiro abafado, fazendo transparecer no lado de fora aquela de quem corri e me escondi por tanto tempo. Anestesiada. 
Você não tinha vencido, mas eu perdi.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Volteio

Não estava mais lá.
Sem qualquer controle, apertado entre quase tudo que já havia tentado, aquele último movimento de hesitação que precede a queda mais violenta ao fundo do poço ou o triunfo de mãos sustentadas sob estrelas, enfim, cedeu.
Olhei pelos cantos dos olhos, segurei forte a respiração e me voltei para o caminho já percorrido. Nenhum tilintar de faca contra taça dedicando o brinde da noite e tampouco a solenidade do segundo aperto de mãos vulgarmente acanhado, dado com a distância exata de um passo e meio entre nossos sorrisos já amanhecidos. Desapareceu. Afundou pelas entranhas da terra apagando os passos dados a dois, as valsas rasgadas a três.