sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ba(da)lada final


Sentada em sua poltrona preferida de assento e encosto de couro na cor caramelo ao estilo Luís XV, ela esperava Julio voltar do quarto com o casaco que havia combinado buscar na noite anterior. A velha radiola - mas impecável, como se houvesse acabado de ser desembrulhada - tocava um disco que repetia quase sem vontade: "Baby, não deixe as cartas em cima da mesa. Talvez eu volte, talvez nunca mais... Me deseje sorte." e com os pés ela acompanhava o compasso do piano choroso, enquanto suas mãos batucavam sem qualquer ritmo os braços da poltrona.
Julio chegou com o casaco, entregou-lhe e sentou-se no sofá à frente. Antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, Raquel o interrompeu pedindo que colocasse novamente a música que tocava antes e, sem esperar pela resposta que viria, foi até a radiola e o fez.
Raquel voltou à poltrona.
- Julio, eu estava pensando em uma coisa...
- Raquel, antes eu queria...
- Julio, estava pensando em relógios de corda. Você já teve um? Já viu um?
- Sim, você sabe que meu avô colecionava antiguidades e que quase tudo o que tenho aqui herdei dele.
- Mas nunca vi um relógio de corda aqui!
- Vovó tratou de vendê-los quando meu avô... Ah, você sabe.
- Mas então, você já viu um, certo? Já parou pra pensar no mecanismo deles? É genial!
- Não, nunca tinha pensado nisso... Raquel, eu queria te falar...
- Julio, presta atenção. Os relógios de corda não funcionam sem a gente. Imagine como devia ser quando só existiam os relógios de corda. Se você esquecesse de dar corda um dia que fosse, perderia o tempo, entende? Sem dar corda, o tempo para.
- Mas mesmo assim, ainda assim, temos a noção de tempo.
- Noção... Só ter noção não resolve nada, Julio. Tem que dar corda, o tempo tem que continuar passando, os ponteiros andando... sabe? Noção não basta. Tem que dar corda, Julio.
- Entendo. Raquel...
- Seu avô dava corda neles todos os dias?
- Não me lembro... Acho que sim. Mas a minha avó não tinha paciencia. Talvez por isso tenha vendido todos.
- E você, Julio? Por que você não dava corda nos relógios?
Julio não respondeu, mas o silencio criado entre os dois agora entupia seus ouvidos, transbordando pelas frestas de portas e janelas, escorrendo entre os vãos do piso. Já não queria.
Raquel levantou-se da poltrona rapidamente, e caminhando até a porta, foi se despedindo:
- Julio, muito obrigada pelo casaco. Com esse frio que tem feito, não sei como ficaria sem ele. E Julio... não deixe as cartas em cima da mesa.
Abriu ela mesma a porta, saiu e fechou.

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